Artigos Técnicos

Queijo Suíço: o problema de olhaduras irregulares e mal distribuídas – Uma revisão

A SOLUBILIDADE DO GÁS CARBONICO NO QUEIJO

Para que seja formada uma olhadura, a pressão interna no queijo deve ser pelo menos 20% superior à externa. Vários fatores afetam este fenômeno.

  • espessura da casca: obviamente cascas mais grossas, resistem mais ao abaulamento provocado pelo inchaço do queijo quando olhaduras são formadas.
  • altitude : ainda que não seja considerado um fator crucial ou de grande importância, a menor pressão atmosférica nas grandes altitudes parece ter um efeito positivo
  • temperatura: obviamente, com base nas Leis dos Gases (as clássicas Leis de Gay Lussac, de Boyle-Mariotte, e de Henry) em temperaturas mais altas, o coeficiente de solubilidade do gás na água é menor, o que facilita sua expansão e no caso do queijo, estimula a formação da olhadura.
  • é necessário que se tenha uma massa com um mínimo de elasticidade para suportar a pressão exercida pelo crescimento da olhadura.

Com base neste princípio sabe-se que:

  1. o grau de mineralização da massa é fundamental e o teor de cálcio deve ser alto. Massas mais ácidas, tendem a apresentar menor teor de cálcio e serem menos elásticas, vindo a facilitar a formação de trincas e não de olhaduras.
  2. o período inicial de câmara fria (2 a 3 semanas, entre 4 e 12°C) é crítico por permitir uma melhor distribuição do sal, mas sobretudo por favorecer a proteólise primaria (ação preponderante de resíduos de quimosina e/ou pepsina e da plasmina, protease natural do leite) que confere um mínimo de elasticidade à massa, permitindo sua boa expansão na fase seguinte da maturação, na “câmara quente” (17 a 25oC), por 3 a 8 semanas em média. O crescimento ideal do Propionibacterium freudenreichii subsp. shermanii ocorre entre 25 e 35°C, mas não se usam estas temperaturas na “câmara quente” pelos riscos de seu crescimento descontrolado, com formação de trincas na massa, além da possibilidade de se formar olhaduras deformadas numa massa menos firme.
  3. o período final de maturação deve ser feito a baixas temperaturas, que evitem formação de gás numa fase em que a proteólise e peptidólise estão muito avançadas e a massa já não apresenta a mesma elasticidade e boas características reológicas. Se houver formação de gás (fenômeno conhecido por fermentação secundária) a probabilidade é maior de que o queijo desenvolva fissuras e não olhos.

Estes atributos de elasticidade tem forte relação com o teor de α-s1-caseína intacta no queijo Emmental, por exemplo. Normalmente esse teor é elevado, devido à alta temperatura de cozimento aplicada na elaboração daquele queijo (53-54°C) que diminui drasticamente os resíduos de quimosina e/ou pepsina presentes na massa. Assim o Emmental mantém melhores propriedades de elasticidade.

Em queijos como o Maasdam e o Jarlsberg (ambos de porte bem menor) ocorre maior ação da quimosina e/ou pepsina, já que em sua elaboração temperaturas de cozimento mais baixas (por volta de 40°C nos países de origem) são adotadas, e assim podem, inclusive, ter períodos de câmara fria um pouco mais curtos.

Há alguns fatores, pouco conhecidos dos queijeiros, que tem considerável influência na solubilidade do gás carbônico e na formação das olhaduras no queijo:

  • O pH do queijo afeta muito a solubilidade do CO2 . Quanto mais baixo o pH, mais aumenta a capacidade da água em reter o gás e mais difícil torna-se atingir a supersaturação e formar olhaduras. Por exemplo, em pH 4,8 o gás carbônico é duas vezes mais solúvel em água do que em pH 5,2.
  • O teor de gordura do queijo também afeta a formação de olhaduras. Enquanto que a solubilidade do CO2 em água diminui com o aumento da temperatura, ela é maior na gordura sob as mesmas condições. Ou seja, queijos com maior teor de gordura no extrato seco, tendem a absorver mais o gás carbônico e assim ter ligeiramente reduzida a capacidade de formação de olhaduras.
  • Normalmente, há uma tendência de maior incidência de olhaduras na região central do queijo. Este fenômeno não tem necessariamente relação com um teor menor de sal ou um potencial redox mais baixo nesta área. Sabe-se que o fenômeno é influenciado pela maior taxa de difusão do CO2 próximo a casca do queijo, que não consegue ser uma barreira totalmente intransponível para os gases.
  • Queijos com menor número de micronúcleos tendem a apresentar mais trincas, já que a supersaturação do CO2 na água do queijo não é diminuída pelo desenvolvimento de uma olhadura, que não se forma devido a menor capilaridade da matriz caseínica. Ao contrário do que se pensa comumente, trincas podem não estar relacionadas apenas à excesso de acidez ou pH baixo demais, que provocariam desmineralização, originando a chamada massa “curta” , de reduzida flexibilidade. A inexistência ou baixa presença de micronúcleos na matriz caseínica gera um aumento gradual da pressão interna que, mesmo que parte do gás escape pela casca, tende a provocar trincas no queijo.

MICRONÚCLEOS: DEFINIÇÃO E FORMAÇÃO

Micronúcleos são bolhas microscópicas presas na estrutura da coalhada. Seriam formadas por pequeníssimas bolhas de ar originarias de várias fontes como a espuma formada na ordenha e/ou tratamento subsequente do leite ou simplesmente associadas a impurezas físicas presentes nele. Inicialmente essas bolhas contêm oxigênio, mas à medida que este é consumido no metabolismo bacteriano , o nitrogênio torna-se o principal componente gasoso.

Qualquer partícula física microscópica, que permita a formação de uma microestrutura capilar na matriz do queijo, com consequente aprisionamento de ar, vai ajudar na difusão do CO2 até este ponto original de desenvolvimento da olhadura, conhecido por micronúcleo. São também conhecidos como pontos de nucleação. No Agroscope na Suíça foram feitas recentemente abordagens cientificas inéditas sobre a formação de micronúcleos no queijo Emmental PDO. Os pesquisadores suíços vinham observando há vários anos mudanças na formação espontânea de olhaduras em queijos PDO em cuja elaboração, exclusivamente com leite cru, não se pode adicionar cultivos (apenas sal e coalho).

Suas extensas observações confirmaram que estes queijos já não produziam olhaduras, em número e tamanho, como acontecia há alguns anos. Com base nos estudos pioneiros de Clark, sabia-se da importância dos micronúcleos como “sementes” para o início de uma olhadura. Havia fortes indícios de que estas “sementes” estariam relacionadas a microscópicas bolhas de ar presas, de alguma forma, à estrutura da coalhada. Havia também claras evidências de que existia um efeito sazonal, que impactava na maior ou menor produção de olhos no Emmentaler PDO. Naquela época do ano (inverno) na qual as vacas eram alimentadas mais com feno, os queijos formavam mais olhos.

Estudos complementares indicaram que, ao longo dos anos, à medida que se melhorava a qualidade microbiológica e física do leite, havia uma tendência de diminuição do número de olhaduras nestes queijos PDO. Concluiu-se que as modernas técnicas de produção de leite (ordenha mecânica, etc.) e tratamentos mais inovadores para aumentar a eficiência dos processos, como o uso de super centrifugas degerminadoras ou de microfiltração, removiam sujidades microscópicas que, afinal, eram as grandes responsáveis pelo aprisionamento das borbulhas de ar (e nitrogênio) que davam origem aos tão imprescindíveis micronúcleos.

Formulou-se assim uma hipótese no Agroscope para tentar comprovar como funcionaria o fenômeno da nucleação: a investigação microscópica de micropartículas de pó de feno poderia demonstrar que as estruturas capilares presentes no tecido são capazes de aprisionar gotículas de ar, que facilitariam a difusão do CO2 presente na matriz caseínica. O dióxido de carbono se dissociaria da solução aquosa (CO2 + H2O -> H2CO3 <--> HCO-3 + H+) para se acumular como gás neste ponto mais susceptível de expansão. Gradualmente essas cavidades se alargariam, aumentando a pressão, e permitindo a formação de uma olhadura visível a olho nu.

Foi então montado um experimento no qual os pesquisadores no Agroscope Liebefeld adicionaram pequenas quantidades (de 1 a 4 mg por 90 litros) de feno (moído como um pó muito fino) ao leite usado na fabricação do Emmental. O feno não foi escolhido por acaso. Foram avaliadas micropartículas sólidas de outros produtos como fibra de trigo, amido, celulose e até mesmo de especiarias tais como gengibre, alecrim e pimenta, sempre em busca de propriedades estruturais com bom potencial para atuar como “semente” para um micronúcleo. Análises do feno em pó em Microscópio Eletrônico de Varredura (SEM) mostraram, através de micrografias, que este apresentava fragmentos capilares intactos que indicavam um alto potencial para aprisionar borbulhas microscópicas de ar.

Foram avaliados 7 níveis de adição de feno (de 0,0625 a 4,00 mg por 90 litros de leite) em comparação a um processo controle onde nada foi adicionado. Usou-se leite cru que foi previamente microfiltrado para remoção de quaisquer partículas físicas eventualmente presentes. Aos 90 litros de leite cru foram adicionados 8 litros de água e 2% de cultivos termofílicos (Streptococcus thermophilus e Lactobacillus lactis). Foi adicionado um cultivo propiônico em dose suficiente para que cada ml de leite contivesse 1.000 células de Propionibacterium freudenreichii . A massa foi submetida a um cozimento a 53°C, resultando em queijos com cerca de 7 kg , com aproximadamente 30 cm de diâmetro. Os queijos foram salgados em salmoura, apresentando um teor médio de 0,5% de sal.

Observou-se o seguinte esquema de maturação:

  • 10 dias a 10°C
  • 60 dias a 22°C, com 80% de umidade relativa do ar
  • 60 dias a 12°C, com 70% de umidade relativa do ar.

Ao final da maturação (130 dias) os queijos apresentaram esta composição média:

  • umidade : 35%
  • gordura: 31%
  • acido propiônico : 92 micromoles/kg

O desenvolvimento de olhaduras foi avaliado em scanner, através de Tomografia Computadorizada (raios X).

Os resultados foram surpreendentes. Enquanto que no processo controle, sem adição de feno, ocorreu fermentação propiônica muito similar aos processos experimentais (89,7 micromoles de ácido propiônico/kg) praticamente não houve formação de olhaduras, mostrando que na ausência de micronúcleos o gás formado se acumula na massa e tende a escapar em quantidades muito maiores pela casca, devido à forte pressão interna.

Concluiu-se ainda que a ausência de micronúcleos ou seu número reduzido pode provocar mais trincas ou fissuras no queijo, justamente pelo acúmulo da pressão.

A Figura 11 mostra a relação entre adição de pó de feno ao leite e o número de olhaduras observados no queijo Emmental após 45 dias de maturação.

Foi observada uma forte correlação estatística (R2 = 0,88) entre esses parâmetros, mostrando o valor do feno em pó como um excelente indutor da nucleação.

Na Figura 12 este efeito é novamente apresentado, com mais detalhes. Observam-se 4 resultados, relativos à adição de 0,125 a 1 mg de feno/90 litros de leite, e os respectivas respostas em número crescente de olhaduras (de 84 a 359 olhos).

Os resultados da Figura 13 mostram a expansão da área ocupada pelas olhaduras e seu número, quando se adicionou feno (0,25 mg /90 litros) ao leite, entre 30 e 130 dias de maturação. Nestes 100 dias o número de olhaduras aumentou de 41 para 175 , enquanto que a área ocupada cresceu de 0,02 para 5,87%.

Finalmente, na Figura 14 são mostradas fotografias dos queijos Emmental, onde nota-se claramente o impacto positivo na formação de olhaduras pela adição de feno em pó ao leite. Observe-se que o queijo C (controle, sem adição de feno ao leite) só apresenta 2 olhaduras, um número muito reduzido em comparação aos outros queijos feitos com adição de feno em pó.

Estes trabalhos demonstraram ainda que à medida que se aumentava a dose de feno em pó, crescia expressivamente o número de olhaduras, porém seu tamanho reduzia-se gradativamente (Figura 14). Estes resultados são apresentados de outra forma na Figura 15. Usou-se como referência olhaduras maiores do que 4 cm3 . À medida que se aumentava a dosagem de feno, diminuía a porcentagem de olhos maiores do que o padrão usado como referência. Atingiu-se um ponto em que se aumentou apenas o número de olhos, mas nenhum deles era maior do que 4 cm3. Com adição de 4 mg de feno por 90 litros de leite, um queijo de 7 kg chegou a apresentar 609 olhaduras, mas nenhuma era maior do que 4 cm3. Concluiu-se que quanto maior o número de micronúcleos , menores serão as olhaduras que, porém, serão mais numerosas.

Estes trabalhos no Agroscope (publicados entre 2015 e 2017) tiveram grande repercussão, não somente nos meios técnicos e científicos, mas também na imprensa mundial. Porém na mídia comum, o tema foi mal interpretado e noticiou-se (Figura 16) que os suíços haviam assombrado o mundo, ao descobrir que os olhos de queijos como o Emmental não se deviam a fermentação por bactérias, mas sim à certas sujidades físicas que estavam sendo eliminadas do leite por modernos tratamentos higiênicos (e fazendo com que o legendário Emmentaler PDO apresentasse, atualmente, muito menos olhaduras).

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